domingo, 22 de janeiro de 2017

Análise do conto "Um padre na família", de Tóibin Colm

  
Este conto pertence ao livro Mães e filhos, uma proposta bem pensada do autor irlandês. Com esse livro ele tenta desconstruir o enfoque dado somente às relações entre pais e filhos na literatura, colocando em evidência as questões das mães na família, sobretudo sua relação com seus filhos. E este conto traduz com maestria essa interação, dando espaço para que o leitor acesse o comportamento de uma mãe diante da descoberta de que seu filho, que é padre, será julgado por ter cometido abuso sexual contra adolescentes, anos atrás.
O título, de início, faz o interlocutor concluir que o conto falará especificamente da vida de um padre, mas a partir do primeiro parágrafo tem-se a imersão no mundo interior da mãe do padre, Molly. Ela é uma mulher idosa e, pelos sinais do enredo, tem uma vida relativamente confortável materialmente.
A visita que Molly recebeu do padre Greenwood abre o conto e um mistério logo é posto em cena, o real motivo da visita. Mesmo sem saber do que se trata, o leitor já recebe um sinal do narrador indicando o suspense sobre a misteriosa visita do padre Greenwood, logo na primeira linha: “Ela viu o céu escurecer, ameaçando chuva”. Há uma dupla interpretação nessa passagem, esse “escurecer” pode indicar o estado interno de Molly, seu mundo interior estava prestes a desmoronar.
Quando ela descobre, através do padre Greenwood, que seu filho será julgado por ter cometido abuso sexual, não se percebe nela nenhuma reação de vergonha cristã ou desespero, pois ela não professava a mesma crença do filho: “Ele reza por mim, eu sei disso, e eu também rezaria por ele, se acreditasse em preces, mas não tenho certeza se acredito. Mas nós já conversamos sobre isso, o senhor está a par de tudo. ”
Por outro lado, sua perplexidade reside no fato de que todos (suas filhas e a sociedade) já sabiam do que estava acontecendo, menos ela. Sua chateação maior é por ter sido a última a saber: “A cidade toda está sabendo? É verdade isso? A única pessoa que não sabe de nada é a velha aqui? Vocês todos me fizeram de palhaça! ”. Além disso, o que choca o leitor é perceber que ela age com tamanha frieza ao saber da notícia, não expressando nenhum tipo de sofrimento pelo que acabava de descobrir a respeito de seu filho:
“Ele vai ser julgado, Molly. ”
“Abuso? ” Ela disse a palavra que todos os dias surgia nos jornais e na televisão, acompanhada de imagens de padres ocultando a cabeça para não serem reconhecidos por ninguém, saindo algemados dos tribunais. “Abuso? ”, perguntou de novo.  
As mãos do padre Greenwood estavam tremendo. Ele fez que sim com a cabeça.
“É sério, Molly. ”
“Na paróquia? ”, perguntou ela.
“Não”, respondeu ele, “na escola. Já faz tempo. Foi na época em que ele era professor. ”

            Percebe-se que sua revolta de dá pelo fato de ter sido a última a saber e não pela vergonha deter um filho pedófilo. Na verdade, em nenhum momento ela demonstra pesar e não expressa questionamentos sobre onde poderia ter errado na criação do filho, o que comumente acontece com as mães que descobrem erros graves cometidos por seus filhos. Molly não se sente desesperada nem demonstra sofrimento aparente, mas se preocupa, antes de tudo, com a sua imagem diante das pessoas, uma vez que vive numa cidade pequena onde qualquer notícia tem uma enorme repercussão.           
Quando Molly recebe a visita de suas duas filhas, as quais tentar convencê-la a fazer uma viagem para se ausentar da cidade no período em que acontecerá o julgamento, percebe-se sua postura de frieza e indiferença diante do que as filhas lhe estão propondo. Ela se nega a se ausentar da cidade para não chamar mais a atenção para a pessoa dela. A partir do momento eu que fica sabendo da notícia, Molly se esforça para manter o comportamento mais natural possível:
O padre só foi embora quando ela insistiu para que fosse. Conferiu no jornal o que iria passar na tevê à noite e fez seu jantar como se fosse uma segunda-feira normal e ela pudesse relaxar. Pôs menos leite que de hábito no chá pelando e obrigou-se a tomá-lo, provando a si mesma que podia fazer qualquer coisa dali em diante, enfrentar qualquer coisa.

E sair da cidade justo nesse momento tão polêmico para a sua família poderia representar para os demais que ela está assumindo que está tão abalada que precisou sair da cidade para não sofrer com o julgamento do filho.
Seu diálogo com as filhas demonstra que estas são quem estão mais abaladas com a notícia. Molly demonstra estar firme no propósito de ficar firme até que passe esse momento de tensão na família: “Enquanto for inverno, eu me viro”. Disse Molly. Há aí uma comparação dessa fase ruim a uma estação. Essas palavras de Molly dizem muito ao leitor sobre seu estado emocional, ela compara esse momento ruim com uma fase, dando a esse sofrimento pelo qual passa sua família um caráter sazonal, logo, passageiro.
Durmo até tarde, de manhã, e me mantenho ocupada.  É o verão que eu receio. Não sou das que sofrem daquela tal doença que dá quando não tem claridade. Mas morro de medo dos longos dias de verão, em que acordo ao amanhecer e fico remoendo as coisas mais sombrias do mundo. Ah, as coisas mais sombrias! Mas até o verão chegar, tudo bem.

            Esse fragmento permite perceber que Molly sofre sim com o que está acontecendo, mas compara essa dor a uma dor passageira e se dispõe a ser forte até que essa maré ruim passe.
Outro momento interessante é quando recebe a visita de Frank, seu filho. Ela se portou com tamanha frieza e não tocou no assunto nem fez perguntas, muito menos quis saber o que, de fato, o levou a fazer tudo aquilo. Pelo contrário, ela se manteve fria em todo o momento, pensativa, sem muita reação, se esforçando para fazer tudo como se nada estivesse acontecendo.
Porém, mesmo tentando demonstrar naturalidade em seus gestos (preparando café, colocando a manteiga na mesa, pegando a geleia), o narrador dá os indícios de ela não estava tão alinhada assim emocionalmente:
Molly percebeu que não tinha posto a manteiga na mesa. Levantou e foi até a geladeira buscar. ”
Ela estendeu a mão para pegar a geleia de laranja, que já estava na mesa.
Ela não tomou o chá nem comeu a torrada.
Ela pôs a mão na xícara; o chá continuava quente. ”
Essas passagens falam muito do seu estado emocional, ainda que não demonstrasse claramente ao seu filho.
O último parágrafo do conto demonstra o seu profundo estado reflexivo e Molly demonstra, com suas atitudes e expressões, seu estado emocional.
Ela não se levantou da cadeira enquanto não ouviu o barulho do motor do carro.  Foi até a janela e ainda o viu dando ré e virando, tomando cuidado, como sempre, para não passar por em cima da grama. Ficou na janela enquanto ele partia; ficou ali até que o ruído do carro morresse ao longe.

Talvez ela tivesse dentro de si questionamentos acerca da atitude criminosa do filho, mas preferiu guardar para si todas as suas conjecturas para não parecer abalada, uma vez que lhe interessava mais demonstrar naturalidade diante de todo o vendaval pelo qual sua família estava passando.
Essa possibilidade de existência de questionamentos é sutilmente percebida na frase “[...] ainda o viu dando ré e virando, tomando cuidado, como sempre, para não passar por em cima da grama. ”. Essas palavras mostram que ela reconhece algo de bom e cuidadoso no caráter de Frank em sua atitude de tomar cuidado para não machucar o gramado, para não violar algo intacto e que possui vida (plantas são seres vivos!). Essas palavras podem sinalizar o questionamento dela acerca do porquê de ele ser um homem bom, cuidados com os outros e ainda assim fazer algo tão hostil.
Assim, esse conto mostra, de forma linda e interessante, o mundo interior de uma mãe que se decepciona com seu filho mesmo sem demonstrar claramente essa decepção. O leitor se vê diante de um desafio de decifrar cada passagem, no esforço de capturar nas entrelinhas e no obscuro de cada palavra os indícios que apontam o estado de espírito e emocional da personagem. E perceber todo esse movimento do narrador é, sem dúvida, uma experiência instigante e fascinante.
  


REFERÊNCIAS

TOIBIN, Colm. “Um padre na família”. In: Mães e filhos. Tradução Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.



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